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quinta-feira, janeiro 03, 2008
citação livre de um directo televisivo:
jornalista, interrompendo a explicação sobre os números de mortos na estrada, pegando habilmente numa palavra utilizada pelo entrevistado:
“Por falar em números, ali na conferência de imprensa houve muitos números que parece não dão certo, tem algum comentário?”
Pouco depois, após a explicação que – arrisco – a jornalista não percebeu, conclui assim:
“… dos 665 dias do ano passado, só em 56 não houve vítimas mortais.”

A sede de polémicas dos jornalistas portugueses surpreende-me sempre, cada vez mais. Não há notícia sem polémica, e sem polémica não há notícia. E a culpa parece ser sempre do governo. É como se a única maneira de provar a sua independência em relação ao governo fosse antagonizá-lo a cada passo.
Desta vez é a maneira como se contam os mortos. Alguém descobriu que os indicadores contabilizam só as perdas de vida até à entrada nos hospitais. De repente, é como se o governo estivesse a manipular os números para baixar os índices de sinistralidade. É certo que a credibilidade dos políticos anda tão em baixo – muito por este tipo de “notícias” – que até é fácil imaginar que os esforços da G.N.R. e das ambulâncias do I.N.E.M. em prestar rapidamente os socorros e transportar os feridos graves velozmente para os hospitais deve-se à interferência do governo com o intuito único de baixar esses índices.
Mas será que o jornalista se lembrou de ir ver como são computadas as mortes na estrada nos outros países? Ou de verificar se havia alguma razão para que esse cálculo seja feito assim?

De acordo com o entrevistado do directo televisivo acima citado, o número de mortos na estrada é calculado assim há 70 anos e é apenas um de vários indicadores da sinistralidade – sendo outro o número de mortos após 30 dias (cito de memória). Ora, o facto de ser calculado há 70 anos da mesma maneira é essencial.
Mais do que sugerir a manipulação dos números “para ficar melhor” nas estatísticas, a implicação mais grave desta “notícia” acerca da forma de calcular seria a de lançar a dúvida acerca do progresso (ou retrocesso) dos valores em relação aos anos anteriores. No entanto, a comparação dos indicadores parece manter-se fiável… e infelizmente 2007 foi pior que 2006.

Se os números são calculados da mesma maneira há 70 anos, porque é que foi notícia este ano? Porque é que se arrisca a desacreditar toda uma série de indicadores? Porque é se perde tempo precioso a discutir este assunto? Porque é que nos distraímos daquilo que é realmente importante – que seria diminuir a sinistralidade na estrada – inventando uma notícia supérflua?
É que mesmo que fosse verdade que os números tivessem sido calculados de maneira diferente, haveria tempo para lançar este escândalo daqui a uma semana ou duas. Transformando-o num verdadeiro escândalo - fundamentado, independente, identificando os responsáveis. Mas mantendo a atenção nesta altura para a essencial realidade que são os altos níveis de sinistralidade em Portugal.

E para que é que eu me dei ao trabalho de escrever este texto? Este texto serve para ilustrar o declínio de uma classe – a dos jornalistas. A credibilidade jornalística em Portugal está em queda livre e esta quebra de confiança é, em minha opinião, mais grave que a desconfiança a respeito dos políticos.
O jornalismo deve ser o mais independente possível, não deve ter uma agenda política, mesmo se os meios de informação (jornais, televisões) a possam ter. Acima de tudo deve ser competente e ético.
Não é um equilíbrio fácil, a linha entre a informação livre e a opinião livre é ténue, por isso é preciso marcá-la a cada passo.

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